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CARGO EM COMISSÃO NO SETOR PÚBLICO - AUSÊNCIA DE LIMITAÇÕES
CARGOS EM COMISSÃO NO SETOR PÚBLICO
AUSÊNCIA DE LIMITAÇÕES  

A ausência de limitações precisas entre os cargos de natureza política e os de natureza técnica, a ausência de uma política de recursos humanos são, sem sombra de dúvida, fatores impeditivos da construção de um perfil profissional para os cargos comissionados, criando espaço para a distribuição aleatória, arbitrária e clientelista desses cargos [1], favorecendo, inclusive, o arraigamento do nepotismo em nossa cultura política.

A abundância de cargos comissionados na Administração Pública, além de viabilizar a apropriação patrimonialista dos postos de trabalho, à revelia do sistema do mérito, permite que ocorra um elevado grau de politização da direção da administração pública, em todos os seus níveis, contrariamente ao que ocorre nos países europeus que adotaram sistemas de carreira.

Embora vigore, no âmbito federal, desde outubro de 1989 a Lei nº 7.834, que determina prioridade para os cursos destinados à qualificação de servidores para o exercício de atividades de direção e assessoramento superiores e formulação de políticas públicas, têm sido realizados investimentos inexpressivos nesse sentido. Esse conjunto de fatores acaba, assim, se perpetuando como obstáculo à organização de carreiras, uma vez que a profissionalização dos quadros de pessoal daí decorrente é essencialmente incompatível com o elevado grau de liberdade do comando político no provimento de cargos comissionados atualmente existente.

Para melhor delimitar o campo de utilização desses cargos, a Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, deu nova redação ao art. 37, da CF. A redação original do dispositivo previa que “os cargos em comissão e as funções de confiança ser[iam] exercidos, preferencialmente, por servidores ocupantes de cargo de carreira técnica ou profissional, nos casos e condições previstos em lei” [3]. Todavia, a existência na administração direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo de cerca de 19.600 cargos comissionados de livre provimento, sem contar os cargos existentes no Poder Legislativo e no Poder Judiciário, não associados à condição de ser o ocupante servidor público de carreira, tornou inútil o dispositivo, tornando a máquina administrativa, em seus vários níveis, absolutamente permeável à vontade do dirigente político [4], fator que é mais identificado à medida que se sobe na escala hierárquica.

Em junho de 2000, segundo dados apurados pelo SIAPE, cerca de 35 % dos cargos de direção e assessoramento nos três níveis mais elevados eram providos, no governo federal, por indivíduos sem qualquer vinculação permanente com o serviço público; nos três níveis inferiores, a proporção era menor, oscilando entre 16 % e 19 % de ocupantes sem vinculação permanente com o serviço público.

A alteração promovida ao inciso V da CF pela EC nº 19/98 foi mais um passo importante no sentido de reduzir o uso discricionário dos cargos em comissão, embora tímido. O novo dispositivo constitucional estabelece que “as funções de confiança, exercidas exclusivamente por ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento”.

Esta redação veio a expressamente proibir a criação e uso, ainda que autorizados em lei, de cargos comissionados para finalidade estranhas às expressamente previstas, o que desde logo impede, por exemplo, o uso desses cargos para burlar o concurso público, mediante a nomeação precária para cargos cujas tarefas sejam típicas de cargos efetivos ou empregos permanentes. Assim, um engenheiro, médico, contador ou motorista jamais poderá vir a ser nomeado para exercer tais funções técnicas ou de mero apoio sem que tenha sido aprovado em concurso publico.

Embora seja óbvia a associação fixada no novo inciso V do art 37 – já que o comissionamento pressupõe um vínculo de confiança – desde sempre tais cargos foram utilizados para finalidades as mais diversas, proliferando exatamente em função do fato de que a livre nomeação e exoneração os tornava importante peça no jogo político. Abundam, em toda a Administração Pública brasileira, ainda hoje, passados mais de 2 anos da vigência do dispositivo, situações decorrentes do período anterior, preservadas em nome do “ato jurídico perfeito” e da autonomia dos Poderes e dos entes federativos que fizeram uso dessa flexibilidade. Além disso, outras situações novas têm sido criadas, como é o caso da manobra utilizada pelo Governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, em agosto de 2000, para desobedecer à decisão judicial que determinou a anulação dos contratos de trabalho de cerca de 1.580 servidores da empresa pública Novacap, os quais foram admitidos sem concurso entre 1988 e 1991. Para manter os funcionários que haviam por ele mesmo sido irregularmente contratados em seu primeiro mandato como governador, enviou à Câmara Legislativa projeto de lei [5], aprovado em menos de 24 horas de tramitação, criando idêntico número de cargos em comissão na administração direta, em confronto direto com a norma constitucional. Enquanto isso, candidatos aprovados em concursos públicos realizados desde 1991 para cargos de atribuições semelhantes, mas que não foram convocados, protestavam, reclamando a preferência para contratação pelo governo do Distrito Federal.

Esta tem sido a prática corriqueira na Administração Pública brasileira. Recentemente, o Jornal O Globo denunciou em uma série de reportagens o uso dos cargos públicos federais pelo Governo Fernando Henrique Cardoso como instrumento essencial de sua estratégia para assegurar o apoio no congresso. Esclarece ainda O Globo que o número de cargos só não é maior porque muitas empresas estatais já foram privatizadas. Mesmo assim, o governo federal conta com cerca de seis mil cargos qualificados de livre nomeação - dentre os cerca de 19.000 existentes - dos quais cerca de 600 estariam ocupados pelos "afilhados, parentes ou cabos eleitorais dos parlamentares".

No âmbito do Poder Legislativo, os exemplos são abundantes. No Senado Federal, levantamento realizado pela Revista Veja em 1998 identificou que entre os 81 Senadores, dezessete empregavam parentes em seus gabinetes. Na Câmara dos Deputados, é freqüentemente denunciado o uso de cargos de confiança em gabinetes parlamentares para fins de nepotismo: cerca de 180 parlamentares empregariam mães, filhos, genros e outros parentes em funções de confiança [6]. Nas estruturas administrativas e órgãos da Mesa Diretora e Lideranças Partidárias abundam cargos comissionados, que podem ser providos de forma muito mais flexível do que em outros órgãos. Cargos de confiança em comissões permanentes e órgãos da mesa diretora, e mesmo nas lideranças partidárias, são criados de maneira totalmente descontrolada, gerando um inchamento nas estruturas que permite, de maneira quase acintosa, a utilização nepótica de tais cargos, cujas remunerações os tornam especialmente atraentes para uso pela máquina dos partidos políticos - portanto, em desvio de finalidade - ou para “acomodar” políticos que não conseguem eleger-se ou reeleger-se, em situações as mais diversas.

Há, portanto, uma clara distorção da forma como são considerados os cargos públicos pelos praticantes do nepotismo: uma visão patrimonialista, personalista, como se o cargo fosse propriedade de quem dele dispõe para livre nomeação, e como se tal investidura não devesse observar os princípios da impessoalidade e moralidade, ou mesmo existissem à revelia do interesse público, mas em decorrência do interesse pessoal do agente político.

A Transparência Brasil vem, ainda, registrando outros casos de nepotismo noticiados pela grande imprensa. Um dos casos apontados pela entidade é a contratação cruzada de parentes, ou seja, quando se emprega um parente de um político para, em troca, ter um parente seu contratado.

No Poder Judiciário, são também comuns as denúncias de nepotismo e empreguismo. Mas mesmo nos tribunais superiores a prática do nepotismo é corriqueira. Segundo a Revista Veja, nada menos do que 14 dentre os 65 Ministros dos Tribunais Superiores empregam parentes em cargos em comissão.

Aspecto essencial para assegurar a transparência do processo de profissionalização da Administração Pública, é o estabelecimento de regras claras que assegurem aos servidores de carreira o acesso aos cargos e funções de confiança.

Essas situações devem ser, tanto quanto possível, associadas à posse de qualificações adequadas, limitando-se os casos de livre provimento às situações essenciais de critério de confiança política. Nos demais casos, e como regra geral, o acesso a eles deve ser vinculado, por meio de linhas de acesso, às carreiras gerencial e técnicas, em diferentes níveis, e em função da qualificação e experiência do servidor de carreira, como forma de viabilizar a profissionalização e reduzir a descontinuidade administrativa em áreas específicas. Ainda que se assegure condições para que o comando político possa determinar as diretrizes e as políticas a serem implementadas, essa liberdade não pode ser absoluta, sob pena de converter-se, sob a capa do paradigma “agente-principal” em apenas mais uma faceta do clientelismo e do patrimonialismo que contaminam a instituição de uma administração burocrática weberiana no serviço público brasileiro.

É claro que, como ressalta CAIDEN (apud KLITGAARD, 1994; 88), a substituição do sistema do apadrinhamento pelo sistema do mérito não assegura que a seleção dos melhores preparados intelectualmente ou tecnicamente irá assegurar também que sejam selecionados os mais éticos ou morais. Mas, quando se buscar combater a corrupção, pode ser necessário pagar o preço da renúncia a um determinado grau de capacidade técnica em prol da honestidade. Ainda assim, é importante destacar a opinião de KLITGAARD, quando avalia as razões que poderiam justificar a prática do nepotismo, notadamente a superação dos problemas oriundos do relacionamento dirigente-agente (ou principal-agente), onde a confiança do dirigente no agente é fundamental.

Cabe aos planos de carreira definirem até que ponto os cargos comissionados existentes na estrutura hierárquica podem ser caracterizados como “principais” e a partir de que ponto são somente “agentes”, ainda que com autoridade hierárquica sobre os não-comissionados.

Quanto à natureza dos cargos comissionados, é importante salientar que, prevendo a Constituição de 1988 que prescindem de concurso público as nomeações para cargo em comissão de livre nomeação e exoneração, tal hipótese requer interpretação restrita, a fim de que se preserve não apenas o sistema do mérito como a possibilidade de profissionalização do serviço público a partir da obediência ao princípio da ampla acessibilidade aos cargos públicos.

Tal excepcionalidade, no entanto, tem gerado a proliferação de cargos comissionados, em desrespeito à sua natureza específica para a qual o vínculo de confiança e a especificidade das suas qualificações são justificadoras da exceção constitucional, à medida em que são amplas as restrições impostas pelo art. 37, II em relação aos cargos efetivos e empregos permanentes.

A proliferação desses cargos providos por critérios discricionários tem-se dado por meio da criação de cargos comissionados cujos conteúdos atributivos são, na maior parte dos casos, indefinidos - permitindo sua utilização para a satisfação de necessidades corriqueiras, típicas do dia-a-dia dos órgãos e entidades - ou mesmo explicitamente definidos como cargos tipicamente encartados na estrutura administrativa ordinária, como demonstram cargos de advogado, médico, professor, motorista, laboratorista e outros, providos sob a forma de comissionamento sem que esteja associada, a esses casos, qualquer comissão ou compromisso político que justifique a sua exclusão do sistema do mérito. Segundo Lúcia Valle FIGUEIREDO (1991:25), não é suficiente que a lei defina o cargo como comissionado para afastar a exigência de concurso público para ingresso: “se assim fosse, o problema constitucional, que obriga o concurso, estaria resolvido, bastando definir em lei a totalidade dos cargos públicos como de livre nomeação e exoneração”.

As medidas a serem adotada na organização dos quadros de pessoal de qualquer entidade, seja de direito público ou privado, relativamente aos cargos comissionados, hão de considerar, portanto, a natureza precípua desses cargos e as razões que permitem a sua exclusão do sistema do mérito. Não se admitem, portanto, cargos comissionados criados com a finalidade de, simplesmente, substituir cargos efetivos ou empregos permanentes, e destinados a suprir necessidades que devam ser satisfeitas por eles com vistas a burlar o sistema do mérito e encobrir práticas clientelistas ou legitimar o personalismo, sob pena de ofensa aos princípios da moralidade e da impessoalidade.

Em relação à política e estrutura de cargos comissionados e funções de confiança, merece ser destacado o fato de que, historicamente, a Administração Pública brasileira tem avançado de maneira muito lenta no sentido de sua profissionalização.

Essa profissionalização é pressuposto para que as organizações públicas possam ingressar num patamar diferenciado, tornando-se menos infensas às interferências fisiológicas ou clientelistas que, via de regra, impedem que as organizações possam ser geridas tendo com horizonte o interesse público e a continuidade de suas políticas. Do maior ou menor grau de interferência da política de clientela na sua gestão decorre, em grande medida, a eficiência e efetividade das organizações públicas.

Trata-se, portanto, de questão já suficientemente diagnosticada, e cuja solução se encontra, mais do que nunca, ao alcance do legislador e dos dirigentes políticos, que deverão, no curto prazo, estabelecer regra que limite a discricionariedade dos governantes quanto ao provimento dos cargos comissionados, valendo, mais do que nunca, propor-se que sejam providos exclusivamente por servidores ocupantes de cargos efetivos do quadro geral do respectivo ente estatal os cargos em comissão e as funções de confiança de direção superior, limitando-se o livre provimento ao cargo de primeiro e segundo escalão (Ministro, Secretários e Presidentes de autarquia ou fundação e seus equivalentes) e seus assessores imediatos.

Todavia, é de se considerar que não basta ser servidor, ou de determinada carreira, para fazer jus ao cargo comissionado: é necessário que o acesso seja atrelado a processos de qualificação para o exercício da gerência e do assessoramento, guardando correspondência com a posição do servidor na carreira. A redução do espaço para as nomeações políticas ou para a rotatividade das chefias, além de contribuir para o aumento da eficácia e da eficiência da ação do governo, teria o aspecto moralizador de retirar de circulação a “moeda de troca” tantas vezes associada à corrupção em nosso país e que freqüentemente serve à subversão do sistema do mérito. Além isso, a existência de carreiras às quais estejam vinculadas linhas de acesso pode ter grande importância para assegurar a organicidade e continuidade das políticas públicas.

Seria ainda recomendável que os cargos de nível inferior ao terceiro escalão em todos os órgãos e entidades fossem providos exclusivamente por servidores do quadro efetivo das instituições, e até mesmo nos escalões superiores, quando justificável pelo nível de especialização envolvido. No entanto, estabelecer-se restrição absoluta ao provimento de comissionamentos por servidores de carreira requisitados de outras instituições poderia resultar prejudicial à troca de experiências que a mobilidade horizontal que essa espécie de provimento proporciona, sendo requisito, em qualquer caso, que os ocupantes dos cargos comissionados sejam detentores de qualificação gerencial e técnica para o exercício os mesmos. O excessivo insulamento poderia dar origem a uma exacerbação do esprit de corps e a uma maior dificuldade na implementação de mecanismos de prestação de contas e de controle social, contrapondo-se o incentivo à carreira à necessidade de permeabilização das instituições ao fluxo de novas idéias e práticas.

Embora a Emenda Constitucional nº 19/98, ao tratar da matéria, tenha definido taxativamente a proibição de que sejam mantidos nas estruturas administrativas cargos ou funções de confiança voltados ao exercício de atividades que não sejam de direção, chefia e assessoramento, será difícil assegurar a efetividade desse comando constitucional, pelo simples fato de que é virtualmente impossível fiscalizar o exercício de atividades pelos indivíduos contratados por meio desses artifícios.

Assim, tendo-se em conta que o atual clima existente no país sugere uma tendência à redução da tolerância e condescendência com o nepotismo e o empreguismo, pode ser esse um momento único para que sejam redobrados esforços no sentido de aprovação de leis que estabeleçam restrições à conduta dos agentes políticos e administradores públicos acostumados à prática do nepotismo. Mas, sem dúvida, sem que haja um aperfeiçoamento dos mecanismos institucionais e sociais de controle estar-se-á, mais uma vez, resvalando para o mero formalismo, repetindo-se a situação antes apontada por Lívia BARBOSA, em que uma sociedade antimeritocrática convive com um ordenamento jurídico e institucional que, aparentemente, atende aos requisitos e pressupostos da implementação do sistema do mérito.

É esse, sem dúvida, o desafio para esta geração, e para a próxima: fortalecer e consolidar, na prática, uma postura a favor da efetiva profissionalização da função pública no Brasil.
Mendes Neto
Enviado por Mendes Neto em 01/06/2010
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